A relevância do Forte Cumaú na configuração da região setentrional da América do Sul

Para uma melhor compreensão do papel histórico que o sítio do Forte Cumaú desempenhou na configuração da região setentrional da América do Sul se faz necessário compreender a conjuntura política europeia na Idade Moderna e mais especificamente a rivalidade anglo espanhola que foi o estopim dos acontecimentos que se desdobraram nos episódios ocorridos no município de Santana e foz do Rio Amazonas à época do relato.

O protagonismo espanhol na geopolítica mundial do período se inicia com sua unificação em 1479, fator decisivo para a reconquista dos territórios ocupados pelos mulçumanos em 1492, ano que Cristóvão Colombo, a mando espanhol, alcança a América resultando no Tratado de Tordesilhas de 1494. Já no século XVI seu rei, Carlos V acumulava também o domínio do Sacro Império Romano Germânico, com territórios que alcançavam de norte a sul da Itália até a atual Bélgica.

Próspera, a Espanha institui colônias pelo mundo e após o casamento do rei espanhol Carlos I com a Rainha Isabel de Portugal estabelece a União Ibérica transformando na maior potência econômica e militar do planeta incorporando sob seus domínios outras duas potências navais da época: Holanda e Portugal. A tentativa espanhola de se tornar hegemônica invadindo a Inglaterra em 1588 deu a justificativa para os ingleses de ocupar terras espanholas pelo mundo, inclusive na Amazônia, alcançando o Amapá.

Ora, o poderio da Espanha era diretamente financiado pelas riquezas da prata do Vice Reino do Peru e nesse cenário, o interesse pela foz na calha norte do Rio Amazonas é óbvio: aqui era a porta lateral de acesso a tais minas de prata e esta possibilidade já havia sido ventilada pelo inglês Sebastian Cabot já em 1553 pois era conhecedor da viagem de Francisco de Orellana que saiu das regiões argentíferas de Quito no Equador, descendo o Amazonas até o Oceano Atlântico nos anos de 1541-2 numa expedição narrada pelo frei Gaspar de Carvajal.

Cabot escreve ao Rei Charles V da Espanha indicando o provável plano inglês de ocupar a foz do Rio Amazonas visando invadir as minas de Prata no entorno de Quito, fazendo percurso inverso que Orellana realizou, subindo o Rio Amazonas a partir do Amapá. Esta carta permanece disponível na Colecion de documentos inéditos para la historia de Espanã x e é citado em inúmeros livros como o de Joyce Lorymer de 1.989 intitulado English and Irish Settlement on the Amazon 1550—1646.

A possibilidade de invasão do vice reino do peru não era vista como possibilidade apenas por espanhóis e britânicos, mas também por outros contemporâneos como o capitão português D’Eça que ao escrever em 7 de julho de 1615 sobre a presença inglesa em nosso território x alertando os compatriotas da possibilidade dos ingleses de alcançarem as minas de prata no entorno de Quito oferecendo os serviços do agora Vice-Reino de Portugal para deflagar a expulsão dos invasores.

Do lado inglês, em 1584 a rainha Elisabeth concede a Walter Raleigh todas as terras não habitadas por cristãos de que se apropriasse, um ano antes de eclodir a Guerra Anglo Espanhola, o que resulta na chegada de Lawrence Keymis 1596 na costa amapaense iniciando um período de comércio e tentativas de implantação que culminam com a construção do Forte Cumaú em 1631 além de outras diversas fortificações anteriores a ele no perímetro que vai do Oiapoque até a foz do Rio Xingu.

na maior parte das antigas colônias, exceto na Nova Inglaterra, os homens se aventuraram somente com a esperança de uma mercadoria (nominalmente o tabaco), mas aqui há muitas mais mercadorias que uma (como já foi mostrado) assim esta colônia tem mais esperança que todas as outras.”

Privy Council Warrant to the Earl of Berkshire, 22 de julho de ·1631. ln: LORIMER, 1989

Apoiando os britânicos temos a República das Sete Províncias Unidas, atual Holanda que, buscando sua independência conflagra guerra contra a Espanha. A República das Sete Províncias financia os estabelecimentos ingleses na foz do Rio Amazonas via província de Vlissingen, porto de partida de diversas campanhas e de chegada de produtos adquiridos entre as nações indígenas.

Neste cenário, podemos ver que as principais potências mundiais da época se engajam com intensidade e interesses distintos no intuito de ocupar a região estratégica do Forte Cumaú, a saber: Espanha e Portugal de um lado e Inglaterra e Holanda de outro, com o tardio interesse francês em 1697. Joaquim Caetano em 1860 detalha o valor de sua localização:

Com seu tato apurado para escolher posições para si, os ingleses se fixaram no braço ocidental do Amazonas, que, pela sua localização, é a via certa para adentrar o tronco do rio, [...] suficientemente estreito para ser perfeitamente defendido. Ali se fortificaram.”

Joaquim Caetano, O Oiapoque e o Amazonas, Senado federal, edição de 2017, Pg 33.

A rota ao centro do poder espanhol viabilizado por Francisco de Orellana, identificado por Sebastian Cabot, desejado por Sir Walter Raleigh, rememorada e combatida pelo embaixador Godomar e agora ameaçado pela presença na foz do Rio Amazonas das duas únicas potências marítimas capazes de rivalizar com a Espanha foi enfim, o principal estopim para as movimentações espanholas nas costas amapaenses.

Ribeiro do Amaral afirma que “Gaspar de Sousa, o novo governador (Geral do Brasil), nomeado em 1613, recebera ordem de expelir os franceses do Maranhão e de prosseguir na descoberta e conquista do Amazonas” constituindo no meio do caminho a fundação de Belém como cabeça de ponte inicial para a conquista do Sertão Tucujus.

Outro esforço de controle territorial da foz amazônica temos em 1621 com a criação do Estado do Maranhão, constituindo de toda a Amazônia e o atual estado do Maranhão que foi destacado do Estado do Brasil. Seu governante daria satisfação diretamente ao Rei da Espanha, sem intermediários com a intenção de ter uma governança mais próxima das áreas conflagradas e ter conexão direta com a coroa e assim ter maior velocidade na deliberação dos planos de conquista, ocupação e desenvolvimento do novo território.

A conquista luso brasileira da foz se deu a partir de 1623 com a tomada dos Fortes Muturu, avançando Rio Amazonas abaixo derrubando os fortes Nassau, Mariocai, Orange, Mandiutuba, Tilletille, Uarimiuaca, Taurego, Philips, Pataccue e finalmente o último foco de resistência em 1632 no Cumaú.

Assim, o movimento inglês de se posicionar no foz amazônica resultaram em desdobramentos que estão diretamente relacionados com a configuração territorial de toda a região setentrional da América do Sul. Localmente, seu conquistador, Bento Maciel Parente se torna Governador do Maranhão em 1637 e em 1639 obtém o título de Senhor e a donataria da Capitania do Cabo Norte com posse hereditária das terras delineadas praticamente nos mesmos limites atuais do Amapá, sendo o primeiro desenho político-territorial de nosso Estado.

No mesmo ano de 1637 uma força de cerca de duas mil pessoas em 47 Canoas, parte de Cametá e em aproximadamente oito meses de viagem aporta em Quito no Peru confirmando a viabilidade de se alcançar as minas de prata a partir do Amapá. No seu retorno, o relato de viagem de Pedro Teixeira é utilizado como referência para a definição no Tratado de Madrid dos limites entre as coroas espanhola e portuguesa, que toma posse das terras amazônicas delineando as bases dos limites setentrionais do Brasil.

A configuração territorial das nações e estados localizados na região setentrional da América do Sul hoje naturalizados poderiam ter outro desenho se os planos do Conde de Berkshire, financiador do Forte Cumaú tivessem contento. Ele planejou reforçar o Cumaú com cinquenta canhões de diversos calibres, constando em sua lista quatro colubrinas, quatro meias-colubrinas, doze sacres, doze falcões, dez falconetes, quatro sacres-curtos e quatro falconetes-curtos, tudo como forma de resguardar os futuros colonos que sem o apoio de uma estrutura militar robusta não conseguiriam se fixar, optando por se deslocar para a região atual das guianas, conforme vemos relatos da época.

O Comandante perguntou-nos se estes locais nos agradavam, ao que respondemos: Não! — não para estabelecer famílias ali, porque o espanhol, já estabeleceu-se no Pará, de onde podia ir e sair quando quisesse com a ajuda das marés do rio Amazonas, se soubesse que ali havia famílias, não deixaria de visitá-las até a morte; de modo que se achou melhor ir ao longo da costa em busca de algum rio ao qual o inimigo, se viesse do Pará ou de Maranhão, não pudesse retornar sem ir até os Açores para pegar o vento, e assim não possa trazer nenhum índio.”

Diário da viagem realizada pelos pais das famílias enviadas pelos Diretores da Companhia das Índias Ocidentais para visitar o litoral da Guiana, B.L., MS Sloane 179B. - tradução R. W. Forest, Boston, 1914, p 235

Portanto, a vitória no Forte Cumaú facilitou a expansão da ocupação luso brasileira rio amazonas adentro, bloqueando e redirecionando os esforços ingleses, holandeses e franceses para o norte, em direção ao platô das Guianas, com a fundação de Caiena onze anos após a conquista de Santana em 1643, Suriname oficialmente reconhecida como posse holandesa após o Tratado de Breda em 1667 e Suriname onde os ingleses tiveram sua posse reconhecida em 1796, mediante artigo do Congresso de Viena. Dessa forma, a conquista do Forte Cumaú tributou para dar os primeiros contornos no mapa da região setentrional da América do Sul.

Bibliografia e referências

AMARAL, Ribeiro do Fundação de Belém do Pará: jornada de Francisco Caldeira de Castelo Branco, em 1615-1616 / Ribeiro do Amaral. -- Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2004.

CARVAJAL, Gaspar de, ROJAS Alonso de, ACUÑA, Cristobal de, “Descobrimentos do Rio das Amazonas”, trad. e notas de C. de Melo Leitão, Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, Brasiliana, série 2a, vol. 203, 1941.

COSTA, Cleonir Xavier de Albuquerque da Graça e, “Receita e despesa do Estado do Brasil no Periodo Filipino. Aspectos Fiscais da Administração Colonial”, Dissertação de Mestrado inédita, UFPE, 1985.

EDMUNDSON, George ‘The Dutch on the Amazon and Rio Negro’, The English History Review (1/2). 1903-1904

FIGUEIRA, luís. Relação de vários sucessos acontecidos no Maranhão e Gram Pará assim de paz como de guerra, contra o rebelde Holandês, Ingleses e Franceses, e outras nações.

GERRITSZ, Hessel. Journaux et nouvelles tirées de la bouche de marins hollandais et portugais de la navigation aux Antilles et sur les côtes du Brésil, traduction par EJ BONDAM. Annaes da Bibliotheca nacional, Rio de Janeiro, v. 29, p. 97-179, 1907.

HARCOURT, Robert A Relation of a Voyage to Guiana, The Hakluyt Society, 1926.

HARRIS, C. Alexander (ed.). A Relation of a Voyage to Guiana by Robert Harcourt 1613: With Purchas' Transcript of a Report Made in Harcourt's Instance on the Marrawini District . Routledge, 2017.

HULSMAN, L. A. H. C. Nederlands Amazonia. Handel met indianen tussen 1580 en, v. 1680, 2009.

HULSMAN, L. A. H. C. Rota comercial amazônica, Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 8 nº 95, agosto, 2013.

JENSEN, De Lamar, p. 345. (1992). Renaissance Europe: age of recovery and reconciliation (em inglês) 2 ed. [S.l.]: D.C. Heath.

LIMA, J. I. de Abreu. e. Compêndio de História do Brasil. Rio de Janeiro: Casa dos Editores, Eduardo e Henrique Laemmert, Tomo I, 1843.

LORIMER, Joice English and Irish Settlement on the River Amazon, 1550–1646 (Hakluyt Society, Second Series). Taylor and Francis. Edição do Kindle.

LORIMER, Joyce. O fracasso dos empreendimentos da Guiana Inglesa 1595-1667 e a política externa de Jaime I. The Journal of Imperial and Commonwealth History , v. 21, n. 1.

MANTÍN, Fernandez de Navarrete, ed., Colección de documentos inéditos para Ia historia de España Tomo III Publicado em Madrid, 1843.

MATTHEWS, T G. Memorial autobiográfico de Bernardo O'Brien, Revista The Américas, 1970.

OLIVEIRA, José Lopes de (Cel.). "Fortificações da Amazônia". in: ROCQUE, Carlos (org.). Grande Enciclopédia da Amazônia (6 v.). Belém do Pará, Amazônia Editora Ltda, 1968.

PARENTE, Bento Maciel, Para conservar y aumentar la conquista y tierras del Marañon, 1639.

PRESCOTT, William Hickling; SECCOMBE, Thomas. History of the Conquest of Peru. Dent, 1908.

RALEIGH, Walter. The discoverie of the large, rich and bewtiful Empyre of Guiana. Manchester University Press, 1997.

RIO BRANCO, José Maria da Silva Paranhos, Barão do Questões de Limites: Guiana Francesa / Barão do Rio Branco. Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2008.

SALDANHA, João Darcy de Moura. "Projeto de Pesquisa Histórica e Arqueológica Para Identificação do Forte Cumaú." (“Hoje acontece o Seminário Forte Cumaú: História, Arqueologia e ...”) IEPA. Relatório Final, 2013.

SALDANHA, João Darcy de Moura. Artigo Do Caribe ao Xingu – Amapá guarda vestígios do processo de ocupação da Amazônia, https://www.nationalgeographicbrasil.com/historia/2021/07/do-caribe-ao-xingu-amapa-guarda-vestigios-do-processo-de-ocupacao-da-amazonia).

SANTOS PÉREZ, J. M. (2019). La conquista y colonización de Maranhão-Grão Pará: el gran proyecto de la Monarquía Hispánica para la Amazonia brasileña (1580-1640). Revista De Estudios Brasileños, 6(11), 33–47.

SILVA, Manoel Cícero Peregrino da, ORG., Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, 1904, volume XXVI.

STAPELS, Geleyn Van. Beschrijvingen van diverse locaties in het Caraïbisch gebied en journaal van een reis van Vlissingen naar de Amazone, Guyana en het Caraïbisch gebied door Geleyn van Stapels, met vijf kaarten, 1629-1630.

TAYLOR, Eva GR (Org.). Os escritos originais e correspondência dos dois Richard  Hakluyts: Volumes I-II . Routledge, 2017.

THEWLIS, John Charles. The peace policy of Spain 1596-1600. 1975. Tese de Doutorado. Universidade Durham.

VIANA, Arthur, Org. Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará, Tomo I 1902.

WILLIAMSON, James Alexander. English Colonies in Guiana and on the Amazon: 1604-1668. Clarendon Press, 1923.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *